WILIAN MARQUES
- MARCIA MARQUES COSTA
- 20 de mar.
- 2 min de leitura
Angelus
Dona Kamola acorda antes do sol, quando muito da cidade ainda dorme e o mundo parece suspenso entre a brisa e a neblina.
Seus pés já conhecem o caminho de cor, as pedras frias repicam sob a sola das chinelas, o cheiro das madrugadas, misto de pão e orvalho, que se repete há mais de quarenta anos.
Ela não pertence à pressa do dia, mas ao tempo dos sinos, que não correm, não atrasam, apenas chamam.
Foi no Paraíso, não o celeste, mas aquele feito de cimento e esperança, que aprendeu a ver o tempo de outro jeito. Criança como tantas outras acolhidas, cresceu ouvindo vozes e passos que vinham e iam, sempre partindo, sempre ficando.
E foi lá, entre a saudade dos que se foram e o riso dos que ficaram, que Padre Agenor lhe disse que o sino precisava de mãos como as dela. Mãos que prendem e soltam, que sentem o peso do ruido e a leveza do silencio.
Os primeiros passos até a torre foram trêmulos, tímidos, o vento mordendo o rosto, o bronze imóvel esperando por sua coragem. Puxou a corda áspera e sentiu o som subir, nascer, ressoando pela cidade como um rio de vento. Desde então, nunca mais parou.
O sino de Kamola não apenas toca, ele conversa.
As mãos da sineira são lapidadas pelo tempo, por infinitos repiques, por singelas e sinceras orações, um rezo sussurrado no bronze.
De manhã, seu chamado se espalha como luz entrando pelas frestas das janelas.
Ao meio-dia, mistura-se ao cheiro do almoço, do salgado frito, aos risos das crianças correndo, voltando da aula. À tarde, é suspiro, é lembrança, faz coro a andorinha que retorna ao ninho, é ponte entre o dia que vai, e a noite que vem.
Quando chove, o som escorre junto com a água, dançando nos telhados. Quando o céu está limpo, parece voar mais alto, como se quisesse alcançar os anjos distraídos.
Ela vê a cidade mudar, crescer, trocar fachadas e calçadas, mas o sino permanece.
Kamola não se pergunta por quê. Apenas sobe os degraus todos os dias, segura a corda e puxa.
Não há pressa, não há pausa.
Apenas o som que se espalha, abraça e vive.
E amanhã, como ontem, como sempre, Kamola tocará o sino. E a cidade despertará ao som de sua voz de bronze.