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WILIAN MARQUES

Anunciação

Em alguns lugares, a segunda-feira não apenas amanhece, ela tem sabor de um silencioso pesar. O céu fechado parece uma promessa de que nada sairá do lugar, mas ainda assim a roupa precisa ser estendida. Um gesto tão automático, más tão necessário, quanto respirar, mesmo sabendo que, em poucas horas, ou mesmo minutos, os pingos molhados vão desmanchar qualquer esperança de secura. Ainda assim, o varal e seus arredores se enchem de peças, como um desfile carnavalesco desafiando o inevitável.

Os prendedores de madeira já escurecida, ou de plástico ressecado, rangem entre os dedos, e enquanto as peças úmidas balançam e escorrem, os pensamentos também escorrem, estes pelos vãos da memória, fugindo do marasmo. A rotina é um fardo, um relógio quebrado que insiste em marcar as mesmas horas. As semanas se repetem, os gestos são os mesmos, e às vezes parece que a única coisa que muda é a roupa suja que se acumula no cesto. O tempo não corre naquele pequeno mundo, ele se arrasta, se repete, se impõe. E talvez seja isso que incomoda: a certeza de que cada pequeno movimento já foi feito antes, incontáveis vezes.

O quintal, com suas pequenas cicatrizes, também não muda, nem a casa, nem a vida. O cachorro dorme no mesmo canto, o muro ainda guarda as marcas de chuvas passadas, o pé de limão resiste. As vozes dos vizinhos se misturam aos carros no asfalto e ao som do rádio, onde as notícias se repetem, um palco aonde os dias encenam sempre a mesma peça, sem espaço para improviso. Uma inquietação percorre o ar, um trovão distante antes da tempestade. E se, por um ato singular, a vida tomasse outro rumo? Um desvio na trilha já pisada, um passo fora do compasso da dança. A ideia pulsa, insistente, sedutora: partir sem aviso, recomeçar sem roteiro, lançar-se ao desconhecido como quem se entrega ao vento, pipa sem linha. Há vertigem nisso, mas também há promessa. O mundo lá fora chama, vibrante, vivo, e talvez, só talvez, seja hora de atender.

A primeira gota cai e molha o tecido já molhado. O olhar se volta para o céu, um suspiro escapa. De que adianta? O tempo, sempre ele, vai vencer de novo. Amanhã, ou na próxima semana, lá estará o mesmo varal, a mesma roupa, o mesmo gesto, o mesmo dia. E a talvez a vida seguirá, como sempre seguiu, fingindo que pode ser diferente, tentando calar o chamado da vida, talvez, só talvez...

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