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WILIAN MARQUES

Tear


Naquela tarde cansada de uma terça-feira qualquer, enquanto o mundo rodava sua engrenagem barulhenta de prazos e protocolos, uma aranha começou sua obra-prima. Entre o requadro desbotado e mal pintado e a fresta gasta da porta da Previdência Social, ela puxava um fio translúcido, mais preciso que carimbo em formulário amarelo. Ninguém a via. Talvez um senhor encurvado, desses que vêm renovar o benefício como quem renova a própria existência, tenha passado perto demais e sentido uma cócega no rosto. Espantou o fio como se fosse vento. A aranha recuou. Esperou. Recomeçou.

Enquanto isso, do lado de dentro, o moço do guichê conferia se o sistema voltara. O sistema nunca volta de verdade. Ele apenas boceja, falha de novo e exige outro número, outro CPF, outra senha. O café sobre a mesa, no copo plástico molengo, amargo como o tempo de espera, esfriava. A impressora roncava em dor muda, cuspindo papéis com números e códigos, cid´s que ninguém lê ou realmente entende. E lá fora, a aranha. É preciso dizer: há mais humanidade numa teia bem feita que em muita conversa fiada ou arte abstrata. Há mais fé numa aranha pendurada no nada que em muito plano mirabolantes e promessas de futuro. Porque a aranha não espera. Ela age. No seu minúsculo teatro de seda, desafia o gigantismo estúpido do mundo. Enquanto acreditamos que dominamos o planeta, ela nos tece.

Sim, somos só mais um bicho — e nem dos mais discretos. Fumegamos asfalto, arranhamos céu com concreto, berramos ao celular como se o universo fosse nosso quintal. Mas tropeçamos na primeira teia invisível. Gritamos, bufamos, tiramos do rosto com asco. E ela ali, artesã ardilosa de oito patas, reconstruindo o que destruímos sem ver. Num mundo onde tudo tem que ser grande — a tela, o carro, o prédio, a promessa — a aranha insiste no detalhe. No fio que só se nota com luz oblíqua. No tempo que não tem relógio. Na arte que não pede aplauso. E ali, sobre a porta da Previdência, ela foi tecendo o absurdo da vida: fiapo por fiapo, como quem diz — tudo é provisório, mas isso não me impede de tentar. No fim do dia, talvez um funcionário tranque a porta com pressa e rasgue tudo. Ou talvez chova. Talvez nada aconteça. A aranha estará lá, reconstruindo. A pequena teimosa, esquecida, lembrando-nos de que o mundo é feito de muitos mundos. E o menor deles, talvez nos compreenda melhor que todos os maiores.

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