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WILIAN MARQUES

Germinar

A criança caiu. De novo. Joelhos ralados, um galo na cabeça olhos marejados, um soluço que vem do fundo da alma como se o mundo tivesse partido em dois. E as vezes partiu. Naquela queda boba entre o sofá e o tapete, entre os brinquedos espalhados no chiqueirinho, ruíram também as certezas frágeis dos pais que, por um instante, pensaram que estavam preparados para criar um pequeno ser humano. Não estavam. Ninguém está. Ser pai ou mãe é um salto no escuro, sem rede, sem corda, sem certeza. É passar a vida tentando reaprender tudo: como dormir com um olho só, como fazer caber o medo no bolso, como chorar escondido, depois de dizer “vai ficar tudo bem” com a voz mais firme do mundo.

Não é só cuidar de alguém. É desaparecer um pouco. É deixar de ser só um, para virar abrigo, porto, colo. É assistir a si mesmo sumindo devagar — o antigo eu, aquele dos sonhos egocêntricos e cafés gourmet, dando lugar a um herói ou heroína de camiseta velha, olheiras, tensão e superpoderes improvisados. Ser pai e mãe num mundo como esse, é acordar todo dia para lutar contra monstros que mudaram de forma. Antes, eram dragões, fantasmas, lobisomens. Hoje são telas, notícias, ansiedade infantil com nome em inglês, doenças que são siglas. É tentar ensinar que o mundo ainda tem coisa boa, mesmo que o jornal diga o contrário. É segurar firme a mão miudinha e dizer: “ta tudo bem” ou “eu to aqui”, mesmo quando o medo gela no seu próprio estômago.

Aprender é cair, e não só os pequenos aprendem. Os adultos também caem, só que por dentro. Caem na dúvida, na culpa, no “será que fiz certo?”, no “e se eu estiver estragando tudo?”. Mas aí vem uma risada boba, um engatinhar fora da hora, um desenho rabiscado, uma mordida banguela no nariz, um “eu te amo” dito com a boca suja de chocolate — e tudo ganha sentido de novo. É guerra e milagre, esse negócio de criar gente. E talvez o mais épico disso tudo seja o ordinário: o leite e a comida derramados, o banho bagunçado, o joelho esfolado que cura. Cada pequeno gesto é uma epopeia íntima. Cada noite vencida sem febre, cada medo vencido, é ali que se constrói a verdadeira grandeza. Heróis de verdade não vestem capa. Vestem paciência, cansaço, fé. São feitos de renúncia e de amor sem contrato. E continuam ali, mesmo quando tudo desaba. Porque sabem, no fundo, que criar uma criança é ensinar alguém a ser feliz num mundo imperfeito — e fazer isso com as mãos trêmulas, mas o coração inteiro.

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