POR MARCIA MARQUES COSTA
Os costumes religiosos vindos com os imigrantes italianos sempre foram muito fortes em Urussanga, desde a fundação em 1878. As famílias aqui radicadas, além de baús com roupas e equipamentos, trouxeram também uma cultura milenar da Europa, principalmente da Itália, onde o catolicismo tinha seu próprio Estado e Papa.
Assim, bíblias, crucifixos, rosários, imagens dos santos padroeiros de suas localidades ou preferência, chegaram às matas do Sul servindo de apoio espiritual no novo e isolado mundo. A vida girava em torno das safras de alimentos e das datas cristãs.
Mas, diferente dos dias atuais, as regras da igreja eram seguidas à risca. Era normal rezar em casa e, só para mostrar o grau de conhecimento deles, em latim.
Quem hoje usa algo do latim? Poucos. Talvez só aqueles que já passaram dos 70 anos e tiveram aulas em bons colégios, aqueles que usam expressões criadas há milênios para conferir a si mesmos um ar de intelectualidade ou, então, universitários em suas teses, os advogados, promotores e juízes em seus trabalhos.
Nossas nonas falavam o seu dialeto, o latim e ainda o português. Va bene che parlavano male il portoghese, ma allora, parlavano!
Mas, em qualquer destas três línguas, todos sabiam que não podiam dançar na quaresma, que deviam fazer jejum de carne nas segundas, quartas e sextas-feiras santas durante os 40 dias que antecediam a Páscoa e que jamais uma mulher poderia entrar na igreja para assistir uma missa sem ter um véu na cabeça.
Fogo na Santa
Algo muito comum nas antigas residências de Urussanga eram as pequenas capelas, construídas normalmente em algum canto do jardim. Nelas, eram colocados os santos preferidos das famílias e velas para agradecer ou pedir graças. Alguns, reservavam um cantinho dentro de casa para fazer um altar ou pendurar uma imagem sacra.
Na casa da minha avó Lígia Bez Batti Cordini, minha bisavó Carmella tratou de fazer um altar bem lindo no corredor do andar superior, onde ficavam os quartos.
Todos os dias, ela se postava diante da imagem de Santa Rita, da qual ela era devota, e rezava o terço. No local, havia sempre flores e dois castiçais prateados, nos quais ela colocava velas grandes e brancas. Mas só as acendia enquanto estava rezando. Ao sair, sempre as apagava.
Certo dia, chamada para atender uma inesperada visita, ela deixou o terço para rezar mais tarde e acabou esquecendo de apagar as velas. E a conversa foi longa, tão longa que deu tempo de quase queimar a Santa. Como iniciou o fogo até hoje não se sabe, pois o cheiro de queimado só foi sentido quando a toalha da mesa começou a feder e a fumaça começou a descer pela escada, tomando conta da cozinha e da sala que havia no andar térreo.
Sorte deles que as paredes eram grossas, de tijolo duplo com o teto bem alto, o que impediu de as chamas destruírem tudo, deixando apenas marcas no assoalho, onde algumas tábuas foram trocadas.
Depois deste dia, Santa Rita ganhou uma nova residência, indo morar na capelinha construída no jardim interno, onde vasos de samambaias e flores-de maio dividiam espaço com uma cadeira de balanço de assento em palha.
Varda che culo!
Procissão era algo que fazia parte da nossa vida, tendo no mínimo três por ano: a do Senhor Morto, a de Corpus Christi e a da Imaculada Conceição, padroeira de Urussanga.
Mas havia também reza e procissão quando algo estava fora do controle dos humanos e necessitava de ajuda divina. Eu, embora não lembre o ano em que isso ocorreu, participei de uma procissão com o intuito de pedir auxílio aos céus para acabar com uma grave seca que atingia o município e região.
Por três semanas seguidas, muitas mulheres, crianças e homens participaram desta procissão, que saia da igreja matriz e ia em direção ao cemitério, onde todos rezavam pedindo auxílio às almas. E os pedidos foram aceitos, com a chuva retornando em abundância.
Além destas, deixo registrado que todos os católicos que faleciam eram velados em suas residências, recebiam as últimas bênçãos na igreja matriz e, depois, numa procissão que dependia da popularidade do morto para definir o tamanho, eram sepultados no cemitério.
Primeiro no cemitério que ficava atrás da antiga igreja matriz Nossa Sra. da Conceição e, posteriormente, no cemitério municipal no Bairro Baixada.
Essas procissões e a missa de corpo presente na matriz diminuíram quando foi edificada a capela mortuária ao lado do cemitério, na década de 1990.
Mas a comédia também estava presente na religião.
Afinal, não era fácil conter o riso vendo a vela do colega toda espatifada depois do tombo nas escadarias da igreja antes da 1ª Comunhão, nem quando o coroinha tropeçava ao se atrapalhar com a veste longa ou, ainda, quando a amiga enfiava o dedão no céu da boca para tirar o Corpo de Cristo em forma de hóstia, que havia ficado grudado após a comunhão.
Mas foi em uma dessas procissões que aconteceu algo bastante engraçado. Diz a lenda que um senhor, católico praticante e que costumava participar de velórios e enterros, estava sendo o “puxador do terço” .
Compenetrado e imprimindo um ritmo que possibilitasse rezar todo o terço no trajeto entre a rua que contorna a Praça Anita Garibaldi e a igreja, ele andava de cabeça baixa por entre as pessoas presentes.
Subindo a escadaria, levantou a cabeça e se deparou com uma mulher de nádegas bem avantajadas. Tão grandes, que ele nunca tinha visto igual na cidade.
Isso o fez pronunciar, sem querer, algo durante a oração. E imaginem a cena de um homem segurando um rosário no meio de muitas pessoas na frente da igreja, dizendo assim: “ Ave Maria cheia de graça .... VARDA CHE CULO... o Senhor é convosco.....
Para quem não entende, a expressão em italiano pode ser traduzida para: olha que bunda! Certamente, só o Padre que os aguardava no altar é que não riu da gafe do rezador.
Cristo bate no centurião
Outro fato engraçado que nosso vizinho Diógenes Damiani me fez relembrar, nos remete à procissão da Sexta-feira da Paixão, na qual era encenado o caminho que Jesus fez até o calvário. Havia nesta procissão algo sinistro e causador de medo nas crianças, seja pelo sofrimento explícito da crucificação ou pelo barulho das matracas com seus sons estridentes durante o cortejo.
Ser o Cristo a carregar a cruz e sofrer pela avenida principal da cidade era algo que muitos queriam. Mesmo que isso significasse algumas chibatadas nas costas.
Mas houve um ano em que Cristo negou a outra face.
Carregando sua cruz em direção à igreja matriz, o intérprete do Filho de Deus achou que o intérprete de centurião estava fazendo sacanagem ao bater-lhe com o relho nas costas.
Ao invés de apenas fingir, o pirracento amigo batia cada vez com mais força e o Cristo, já impaciente e cansado, pedia para que ele parasse com aquilo. A resposta foi uma chibatada ainda mais forte. Não deu outra, o Cristo urussanguense abandonou sua cruz, voou sobre o dito centurião dando-lhe socos e pontapés, e ambos acabaram rolando no chão, com os demais integrantes da procissão intervindo para afastá-los. Parece que, na nossa Benedetta, o maledetto sangue quente faz até Cristo perder a paciência. Gostou?
Sabe de alguma história? Repasse para a gente!
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