Histórias da Benedetta Os Cheiros da Vida
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  • Foto do escritorJORNAL PANORAMA SC

Histórias da Benedetta Os Cheiros da Vida

POR MARCIA MARQUES COSTA

Dizem os cientistas que o olfato é considerado o instinto mais primitivo do ser humano, e que o epitélio olfatório é o local onde células chamadas de quimiorreceptores nos conectam ao mundo pelo cheiro.

Além de ser considerado um mecanismo de defesa do organismo, o olfato também ganha ares de emotividade ao se inserir em nossas memórias, seja nos bons ou dolorosos momentos.

Eu, como apreciadora nata da boa comida e de espírito historiador, posso afirmar que isto é verdade.

Tenho vários cheiros a marcar passagens da minha vida e, graças a Deus, a maioria deles de bons momentos.

O interessante, no entanto, é analisar quantas mudanças ocorreram entre um cheiro e outro e, também, como até um cheiro ruim pode trazer recordações prazerosas.

Para se ter noção, o fedor do galinheiro ou da estrebaria, me leva ao tempo em que as famílias residentes no centro da cidade de Urussanga podiam livremente criar seus animais, produzindo ovos, carne e leite para seu consumo. Hoje isso é proibido.

Quem tinha terreno suficiente, fazia canteiros com hortaliças, pomar com vários tipos de frutas, tinha uma vaquinha leiteira, um chiqueiro com um porco se alimentando de restos de comida chamado de “lavagem” e também galinhas para garantir o ovo da fortaia e o ensopado que acompanhava a polenta. Sem falar na galinha assada no forno, servida com macarrão caseiro e maionese,que era sagrado cardápio de todo domingo.

Diferente dos dias atuais, que se vai ao mercado adquirir ovos, carnes de frango e porcos de granjas, na minha adolescência a vida junto à natureza era rotina.

E bota rotina nisso!

Como filha mais velha, foi-me dada a incumbência de buscar a lata de lavagem na casa dos parentes para engordar o porquinho que eles criavam em sociedade.

Então, todos os dias eu saía da rua Américo Cadorin para ir até a antiga Casa Paroquial ao lado da igreja onde morava minha avó paterna Tilinha e, posteriormente, até no final da Praça Anita Garibaldi onde residia minha avó materna Lígia, para buscar os restos de comida que elas armazenavam em uma lata de tinta.

Carnear um porco era evento familiar. Tudo era programado com antecedência. Comparecia meu avô Dego que era o responsável para ajudar meu pai José abater o animal, e depois iam chegando avós, tios e vizinhos para ajudar ou ficar olhando os outros trabalharem e degustar as sempre presentes cachacinhas de butiá ou com outros sabores.

As crianças, ao menos na minha casa, eram proibidas de assistir o momento em que o animal morria ou enquanto eles faziam os procedimentos para depois confeccionarem a morcilha, o codeguim, o torresmo e o salame.

E nessa última parte, todos podiam participar.

Quem como eu não sabia fazer nada, ficava bisbilhotando e ouvindo as conversas dos mais velhos.

Porém, por pouco tempo, pois eles sempre arrumavam tarefas como buscar bacias, levar toalhas ou buscar água e café para quem estava trabalhando na máquina de moer carne e de embutí-la nas tripas, ou para quem cuidava do tacho da banha e do fogo.

O salame fujão

O cheiro de carne era forte, às vezes até dando enjoo, mas a sensação de fazer parte de algo grandioso como uma família me deixava feliz. Nem mesmo a bronca que levei por causa de salame é capaz de manchar as carinhosas lembranças daquela época.

Para quem ficou curioso, registro que, certo dia, enquanto minha mãe se estressava dividindo-se entre cuidar dos quatro filhos, fazer comida e ajudar meu pai e avô a fazer salame no porão da nossa residência, eu aproveitei para me deliciar com o pão d’água que meu avô Dego preparava em sua padaria e, para não perder o costume de ceder à gula, coloquei meio salame dentro dele. Coincidentemente, cada vez que eu ia dar uma bocada no pão e o salame saía para fora, minha mãe passava pela varanda onde eu estava.

Pensando que eu estava pegando a massa de salame recém feita para colocar no pão, ela me deu uns bons tapas e brigou comigo por ser tão gulosa, afirmando que carne crua daquele jeito fazia muito mal. Acontece que o dito salame havia sido levado pelo meu avô e já estava tão curado que, cada vez que eu o mordia, ao invés dele se partir, saía do pão. Somente depois que casei, foi que minha mãe soube o que realmente aconteceu e essa história era sempre motivo de boas gargalhadas.


Voltando codeguim

Outra história que aconteceu na minha família, mas com o pai de meu bisavô, veio à tona há alguns anos e foi relatada pelo amigo Armando Bettiol.

Isso aconteceu por volta de 1930/40, quando o ex-prefeito Lucas Bez Batti, pai do meu bisavô Polydoro Bez Batti, resolveu enviar um de seus filhos, que não era muito chegado ao trabalho, para estudar em Porto Alegre. Todo feliz, Lucas disse a um amigo: “já que ele não quer nada por aqui, vamos ver se estudando dá alguma coisa. Vou bancar os estudos” disse o esperançoso pai.

Passado um ano, o filho retornou para Urussanga, mas não teve coragem de voltar para a casa do pai por ter ido mal nos estudos e acabou indo morar com seu tio. Conhecedor da rotina do pai, procurava sair somente em horário que não iria encontrá-lo. Mas a mentira durou pouco. Precisando falar com seu irmão, Lucas descobriu onde o filho que não lhe enviava cartas do colégio estava. A decepção foi grande. Tão grande que, ao ser questionado por um amigo que fim tinha dado os estudos do filho em Porto Alegre, Lucas disse: “olha, mandei pra lá achando que ia melhorar. Mas foi salame, e voltou codeguim!”. Ou seja, voltou pior do que foi, pois o codeguim era um produto considerado inferior ao salame.


Mudanças tecnológicas

Vivendo em uma época que geladeira tinha congelador pequeno e freezer era palavra desconhecida para muitos, armazenar a carne de porco ou boi era bastante difícil. Por isso a maioria dos porcos eram carneados no inverno, evitando o risco de os derivados apodrecerem com o calor e a umidade da Benedetta no verão.

Muitos guardavam pedaços de carne cozida dentro da banha para consumí-las posteriormente e algumas pessoas faziam charque da carne bovina.

Vivíamos um tempo bem distante das câmaras frias dos modernos frigoríficos que hoje produzem toneladas de embutidos diariamente sem se preocupar se haverá tempestade com relâmpagos e trovões para estragar a produção. Um risco considerado grave naqueles tempos, pois dizia-se que tempestades estragavam embutidos.

Alguma famílias se revezavam, se alternando para carnear o porco, dividindo a carne entre eles. Esse costume facilitava, pois todos sempre tinham banha e carne.

Embora atualmente ninguém tenha porcos ou galinhas no centro, produzir seus próprios embutidos é algo que muitas pessoas ainda fazem, adquirindo animais criados sem ração, em propriedades rurais do município, para produzir embutidos e armazenar carnes para o ano em congeladores.


Emoção becariana

O momento em que me tornei mãe pela primeira vez, também tem cheiro da tradição da becaria e da vida em família. Quando estava no final da gravidez de minha primogênita Grazziele, participei da confecção de embutidos na residência de meu cunhado Arquimedes.Como não me deixavam fazer esforço para mexer a banha ou carregar peso, fiquei incumbida de segurar a tripa no bocal da máquina de moer. Enquanto minha saudosa cunhada Rosa tocava a máquina, eu ia fazendo o movimento necessário para encher a tripa com carne. Foi quando olhamos uma para outra e começamos a rir, associando o salame que saía da máquina com um órgão masculino ligado ao sexo. Num movimento de jogar o corpo para traz para rir, acabei escorregando e caindo, deixando todos preocupados. Por sorte, o vizinho de meus cunhados era o médico ginecologista que acompanhava a gravidez, Dr. Brivaldo Pereira, que havia programado o parto para o final de junho. Sem as modernas máquinas hoje existentes para saber se o bebê estava bem, Dr. Brivaldo antecipou o parto para o Dia dos Namorados.


Preservando

Até na minha profissão o olfato está inserido nas lembranças, com o Panorama SC tendo lançado o “gOrdinho.com”, uma série de documentários mostrando métodos utilizados desde a becaria até a confecção de molho tradicional para a suculenta macarronada. Na ADIU, sede da associação italiana que funcionava no Parque Municipal,participei de vários eventos lembrando da becaria, que é quase uma arte passada de geração em geração. E lógico, sempre com o aroma inigualável do Goethe. Que bom poder lembrar e brindar. Tim, tim!


FOTO ARQUIVO FAMÍLIA COSTA


Marcos Costa com o filho Arquimedes carneando um porco em sua residência, ao lado da avenida que hoje leva seu nome, no centro de Urussanga. Década de 1970.

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